(1) O meu objetivo é mostrar evidências da existência da Emissora Nacional de Radiodifusão em 1934 – bem antes de agosto de 1935, como a RTP indicou em recente anúncio de promoção da rádio de Estado.A minha hipótese inicial é que o ano de 1934 foi um dos mais importantes da história da rádio de Estado, tão importante como o período 1974-1975 (mudança da ditadura política para a democracia) e até do que em 1948-1949 (despedimento de muitos quadros da estação por defenderem e assinarem documentos favoráveis à instauração da democracia após o final da II Guerra Mundial).Na verdade, tal como foi violenta a luta política em 1974-1975 pelo controlo da estação, em 1934 foi igualmente duro o conflito. Com a diferença de, há 46 anos, haver liberdade de expressão e, em 1934, a luta ter sido totalmente censurada em termos de opinião pública publicada (ou quase, como comprova a notícia da Rádio-Ciência, maio de 1934, dirigida pelo conceituado jornalista Álvaro Contreiras).
Pela notícia, compreende-se que a inauguração da Emissora Nacional estava prevista para 28 de maio de 1934, data adequada ao espírito comemorativo do Estado Novo. A inauguração seria adiada, embora a estação estivesse já a emitir regularmente. Ressalvo o lado inauguracional do regime, numa época em que o Instituto Nacional de Estatística já funcionava e o Estádio Nacional e a mata de Monsanto, uma fronteira da cidade de Lisboa, se anunciavam para breve, fora uma planeada mas não executada ponte sobre o Tejo, deste lado a sair do Beato. O ministro Duarte Pacheco adquiria prestígio pelo seu empreendedorismo. Portugal não era a Itália de Mussolini, mas a febre da obra edificada aproximava-se. Julgo ser necessário voltar a este tópico.
Na notícia, observa-se uma luta pelo controlo da Emissora Nacional – de um lado, a Administração Geral dos Correios e Telégrafos (do ministério das Obras Públicas), de outro lado, o Secretariado de Propaganda Nacional (da dependência de Salazar) . A estação de Estado nascia e já ameaçavam a sua autonomia.
(2) António Oliveira Salazar autorizara a ida de dois engenheiros dos CTT (então Administração Geral dos Correios e Telégrafos) à assembleia geral da UIT, em Londres e junho de 1934. Um dos assuntos era a mudança de frequência de rádio russa quase em cima da frequência da Emissora Nacional. Se a rádio portuguesa não estivesse a irradiar, não se colocaria tal problema.A autorização sucessiva do ministro e do presidente do conselho de ministros ao pedido de Luís Couto dos Santos (administrador-geral dos CTT) mostra a dependência da Emissora Nacional, pelo menos financeira e de estratégia internacional, daquele quase super-ministério que eram os Correios.
(3) Sigo aqui documentos do arquivo de Luís Couto dos Santos, administrador-geral dos CTT, entidade que controlava o orçamento da Emissora Nacional, ficando a comissão de programas sob a competência direta do ministro Duarte Pacheco.Pelo documento de 29 de abril de 1935 (que não incluo na totalidade), percebe-se que o presidente da comissão administrativa da Emissora Nacional, António Joyce, passou a reunir semanalmente com Couto dos Santos para controlo das contas.
Couto dos Santos tinha, aliás, uma proposta radical: eliminar a comissão administrativa, por entender supérflua e consumidora de gastos, e passar o controlo total da estação para os CTT. Para ele, a rádio era uma simples alocação de recursos musicais, tudo bem racionalizado dentro do orçamento pago por duodécimos. Desde janeiro de 1935, a gestão de Joyce à frente da rádio de Estado estava condenada ao fracasso. Além disso, o gestor dos correios escondia neste memorando o controlo político que já fazia dentro da estação, sobre o qual espero escrever.
(4) Quando Luís Couto dos Santos sugeriu a eliminação da comissão administrativa da Emissora Nacional em finais de abril de 1935, ele sustentava isso com os dados financeiros da rádio. A rádio estava a custar muito dinheiro – e ele habituara-se a ter receitas positivas com os serviços de correio, telégrafo e telefone. O argumento principal era a incompetência da comissão administrativa. Mas o correio-mor escamoteava que dois dos três elementos da comissão administrativa da rádio de Estado eram de sua confiança, oriundos da própria Administração-Geral dos Correios e Telégrafos: o diretor técnico Manuel Bivar e o diretor financeiro Jorge Braga. O único elemento externo era precisamente António Joyce (1888-1964), com reputação de etnólogo musical e dinamizador do orfeão de Coimbra, antes caído na indigência. Joyce seria criticado por Henrique Galvão, quando este assumiu a liderança da Emissora Nacional em 1935, precisamente pelos gastos (as notas do banco tinham-se incompatibilizado com as notas musicais).
Ora, Joyce foi muito bem acolhido pela imprensa quando o seu nome foi publicitado como primeiro presidente da Emissora Nacional, como se lê num editorial do Diário de Lisboa, de 2 de junho de 1934, peça jornalística quiçá ingénua na sua estrutura.
(5) Talvez a equipa de marketing da RTP não considere 1934 na vida da Emissora Nacional porque esta estava muito dependente da Administração-Geral dos Correios e Telégrafos, tornando-se assunto prioritário na administração de Henrique Galvão e apenas resolvido no mandato de António Ferro. Sim, os Correios eram uma força esmagadora no país em termos de influência e a sua perda do controlo da rádio do Estado foi uma longa guerra.
Por exemplo, em 13 de março de 1935, o ministro Duarte Pacheco concordava com a proposta de Couto dos Santos em abrir a estação de ondas curtas e a ampliação da potência da estação de ondas médias já em funcionamento. E Rádio Semanal, suplemento de O Jornal do Comércio e das Colónias, de 1 de junho de 1935 (na altura da nomeação de Henrique Galvão para presidente da comissão administrativa da Emissora Nacional), atribuía o plano da radiodifusão nacional a Couto dos Santos.
(6) Nota de compreensão: sobre António Avelino Joyce, primeiro diretor da Emissora Nacional, há uma entrada de Ana Cristina Brissos na Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, direção de Salwa Castelo-Branco (3º volume).
Aí, Joyce é apresentado como regente, compositor, crítico de música e folclorista. Licenciado em direito, exerceu cargos em governos civis e foi secretário das presidências de Teixeira Gomes e de Afonso Costa. Reorganizou e dirigiu o Orfeão Académico de Coimbra, levando-o a atuar em França (1911). Nascido em Lisboa (1888), em 1939 foi viver para o Porto, onde manteve um programa no Emissor Regional do Norte. Regressou a Lisboa em 1945, onde foi crítico musical em diversas publicações e foi cofundador do Círculo de Cultura Musical e da Sociedade de Concertos de Lisboa.
(7) Nota de compreensão: Luís de Albuquerque Couto do Santos nasceu no Porto em 1896, pertencente a uma ilustre família. Começou a estudar engenharia em Bruxelas, mas, devido à I Guerra Mundial, regressou a Portugal e ingressou na Faculdade de Engenharia do Porto, terminando o curso em 1920 com 17 valores. Entre 1920 e 1929 foi assistente do grupo de Eletrotecnia e prestou provas públicas para professor auxiliar. Em 1923, foi encarregado da regência da cadeira Medidas Elétricas, tendo posto a funcionar o Laboratório Eletrotécnico e publicado Trabalhos Práticos de Medidas Elétricas (1923) e Lições de Medidas Elétricas (1924). De 1929 a 1932, foi chefe de Gabinete de João Antunes Guimarães, Ministro do Comércio e Comunicações (também do Porto), chefiou as oficinas da Companhia Carris de Ferro do Porto, foi engenheiro-inspetor das Obras da Santa Casa da Misericórdia do Porto, secretário da Associação dos Engenheiros Civis do Norte de Portugal e, desde 1932, comissário do governo junto das companhias reunidas de Gás e Eletricidade de Lisboa. Entre 1933 e 1965 desempenhou o cargo de Administrador Geral dos Correios e Telégrafos (e Telefones), associado, assim, à renovação da área das comunicações nas décadas iniciais do Estado Novo, incluindo a Emissora Nacional. Recebeu o título de correio-mor, reinstituído na reforma de 1947 (informação retirada de https://sigarra.up.pt/up/pt/web_base.gera_pagina?P_pagina=1007321).
Ao sair dos CTT, foi viver para a região de Braga, levando consigo um valioso conjunto de caixas de documentos da sua atividade como correio-mor. Por falecimento, esse material foi doado à Fundação Portuguesa das Comunicações, onde consultei o espólio relativamente à rádio. Além da Emissora Nacional, o arquivo Couto dos Santos tem muitos documentos das primeiras estações amadoras, caso de CT1AA, o que me permitiu reconstituir a atividade radiofónica de Abílio Nunes dos Santos Júnior – e que publiquei em As Vozes da Rádio, 1924-1939.
(8) O Secretariado de Propaganda Nacional (depois SNI), de António Ferro, queria o controlo político da Emissora Nacional, tentando, sempre que possível, criar conflitos com a Administração Geral dos Correios e Telégrafos, de Luís Couto dos Santos.
Creio, embora não tenha a certeza, que Salazar se devia deliciar ao tomar conhecimento da luta entre dois homens fiéis ao Estado Novo. O princípio de dividir para reinar devia estar subjacente a esta perspetiva. No caso de 20 de abril de 1934, em causa estava a tradução de declarações do próprio Salazar para francês e inglês (falta a última página do documento, apenas composta pela data e assinatura do correio-mor). Os enredos dignos de uma posterior telenovela mexicana estavam ali patentes. No fundo, o importante era manipular a Emissora Nacional.
(9) Fernando Homem-Christo trabalhou na Emissora Nacional desde o outono de 1934 até Henrique Galvão assumir a liderança da estação em junho do ano seguinte. Ele entrou para a rádio através do ministro Duarte Pacheco e do administrador-geral dos Correios Luís Couto dos Santos. A sua função era a de comissário político, a indicar que ministro e correio-mor pretendiam montar uma estrutura concorrente à do Secretariado de Propaganda Nacional, de António Ferro, servindo-se da própria rádio de Estado.
Os documentos que ficaram dão uma imagem muito nítida do trabalho de propaganda na programação da estação e um retrato quase impiedoso do interior da Emissora Nacional durante o período acima mencionado (e que procurarei escrever noutra mensagem).
O comissário político tinha por missão desenvolver as competências de propaganda na parte falada, por oposição à parte musical, que os ouvintes gostavam mais, mas que Homem-Christo entendia ser necessário doutrinar. Como? Por meio de conferências, palestras, discursos de emergência, fosse o que isto quisesse dizer, diálogos, efemérides, noticiários políticos. Esta orientação política causou algumas críticas, caso do jornal Bandarra (30 de abril de 1935).
Fernando Homem-Christo era filho de Francisco Homem-Christo, uma figura muito conhecida de Aveiro, jornalista, militar e deputado da extrema-direita, e irmão de Manuel Homem-Christo, amigo íntimo de Mussolini e, daí, quadro influente no partido italiano do ditador italiano, falecido prematuramente em acidente de viação.
(10) No final de maio de 1934, a estação tinha ao seu serviço dois engenheiros, quatro operadores e um locutor. No final de julho de 1935, já tinha um corpo de pessoal de 62 elementos, incluindo a comissão administrativa, mas excluindo as orquestras e os seus músicos.
Os relatórios confidenciais de Fernando Homem-Christo (dirigidos ao ministro das Obras Públicas ou à administração dos correios) dão atenção a alguns desses profissionais. Num deles, escreveu: “destacar o dr. António Joyce, a cujo caráter, absoluta lealdade, bondade, aprimorada educação, desinteresse, temperamento e competência artística se presta homenagem. Da parte dele, só boa vontade tem o signatário encontrado, tendo aqui cabimento dizer que o mesmo senhor lhe parece ter recebido com satisfação e desonerar-se de toda a responsabilidade política e sem o menor ciúme e também com satisfação sincera a passagem para o signatário da direção sobre toda a matéria falada. Também é de justiça afirmar que o engenheiro Bivar parece ter amor à sua técnica, embora tenha manifestado alguma relutância em ceder certas atribuições extra-técnicas. Junto deste senhor, há um mau elemento: um sr. Carlos Ribeiro, que mexe em tudo e não está especializado em nada, é intrigante, invejoso, ambicioso, petulante e pouco respeitoso”.
De Manuel Bivar, o comissário político azedaria a sua perspetiva: “Hoje concorda com uma coisa, amanhã põe objeções e opõe sempre a tudo uma resistência passiva. Em última análise, acha que tudo está bem na Emissora, ou pensa que é impossível por bem o que está mal. E defende sempre o pessoal nas suas faltas. Como uma pessoa dominada por estas disposições psicológicas que se pode fazer”?
Para o mesmo autor de relatórios confidenciais, não haveria na Emissora Nacional mais de três “pessoas seguramente afetas ao Estado Novo – se houver”, o que afastaria, a crer no seu testemunho, que o ambiente interno fosse tão estadonovista como se pensaria. Inclusive, ele suspeitava de Carlos Queirós, chefe da seção de cultura geral, e de Reis Santos, chefe da secretaria de produção. O primeiro manter-se-ia na função aquando da inauguração de agosto de 1935.
Se o estado de limpeza era caótico na primavera de 1935, mas melhoraria depois, havia “pessoas que trabalham demais, outras que trabalham de menos. […] em suma, poucos cumprem o seu horário com regularidade. Daqui resulta uma grande dificuldade de coordenação do serviço”. Para o comissário político, fazia diferença que os quatro locutores trocassem horários, porque nem todos serviam “para a leitura de coisas políticas e, desta maneira, ou estou inibido de marcar com antecipação leituras, ou fazendo-o, me sujeito a que elas sejam mal realizadas”.
Fernando Homem-Christo também se julgou adequado a propor promoções, admissões e demissões de pessoal. Seria o caso do dr. Isidro Aranha, que devia subir a chefe de departamento (até aí adjunto de Luís Reis Santos, que deixara finalmente a rádio), e era “um grande trabalhador, com gosto pelo serviço e amor à sua função. É uma pessoa inteligente, culta e absolutamente correta. Não sei quais são as suas ideias políticas, mas quase posso assegurar, pois costumo conhecer os homens depressa e bem, que é absolutamente incapaz, em qualquer hipótese, de faltar aos seus deveres”.
O responsável do Serviço Político – como se autointitulava – proporia Francisco Bruno Herédia para chefe da secretaria geral, pela “sua educação, relações, experiência adquirida, dedicação à ideologia do Estado Novo, serviços prestados e boa vontade de servir muito além do que era de exigir a quem tão mal remunerado tem sido”. No quadro de pessoal de final de julho de 1935, Herédia ficaria com o lugar de adjunto da secretaria da comissão administrativa. A secretaria teria funções respeitantes a “contas, pagamentos, processamentos, orçamentos, aquisição de materiais”.
Fernando Homem-Christo embirrara com o contínuo Mota, garoto na idade e no comportamento, a quem se via obrigado a repreender constantemente, sugerindo o seu despedimento. Para o seu lugar, ele alvitrou Albino Ramalhete, solteiro, de 31 anos, “homem sério, de família que conheço bem, educado à antiga dentro dos bons princípios sociais e morais. Sabe ler, escrever e contar bem. É de poucas falas, tem boa aparência e cara de poucos amigos. É há anos carpinteiro das oficinas da CP do Entroncamento, com comportamento exemplar. Está há cerca de um ano sem trabalhar por motivo de doença. Acha-se restabelecido, mas não pode aguentar um trabalho que exija esforços físicos. […] O seu único defeito – se não é, pelo contrário, uma qualidade – é ser, de momento, um tanto provinciano”, propondo a remuneração mensal de 450$00.
(11 e penúltimo) O número de 28 de julho de 1935 de Rádio Semanal (suplemento de O Jornal do Comércio e das Colónias) fazia um balanço de atividade da Emissora Nacional de abril de 1934 a julho de 1935. Os atuais relatórios anuais de atividade e contas da RTP quanto à rádio são apenas mais extensos, descontando a promoção institucional que ocupa algumas páginas, mas a qualidade é aproximada.
Então, lembravam-se a retransmissão (logo em diferido) de concertos realizados nos teatros Politeama e Ginásio, a retransmissão dos concertos da Orquestra Sinfónica de Madrid, os concertos de música sacra realizados na igreja de S. Domingos, os grupos corais da Sociedade Duarte Lobo e a orquestra sinfónica da Emissora Nacional, as audições do Coral Zamora, dois festivais de aeronáutica na Amadora (onde estava o aeroporto antes do da Portela de Sacavém), o desafio de futebol Portugal-Espanha (empate, a quase fazer esquecer a cabazada que os espanhóis tinham infligido em Madrid), os ensaios das marchas populares, os discursos de Carmona e de Salazar, o banquete dos intelectuais conservadores e a inauguração da Assembleia Nacional.
Ou ainda a transmissão das cerimónias da Páscoa a partir de Madrid (recorte do jornal As Novidades, 22 de abril de 1935). E o teatro, casos de A Ceia dos Cardeais ou as peças de Mário Monteiro, os programas infantis e humorísticos e os noticiários.
Se isto não merece constituir quase um ano e meio de rádio de Estado para ser mencionado na sua história, o que é preciso fazer?
(12 e último) Por manual de aceitação, eu entendo a entrega de um projeto ou equipamento ao cliente e com regras e processos de aplicação a serem verificados, tipo check list a fazer para o arranque. Para aqui, eu trouxe elementos autorizados à aceitação do ano de 1934 como início da história da Emissora Nacional. Resta à empresa pública de rádio e televisão portuguesa fazer as correções devidas.
Sei que o tempo experimental foi demasiado, o que quer dizer que houve constrangimentos diversos. Um deles foi o atraso da construção do edifício das antenas em Queluz, como se lê no documento do administrador-geral, face a pressões da Standard Electric para o pagamento do emis0sor.
Eu tenho uma teoria estrambólica a justificar o atraso da “inauguração”, inicialmente prevista para 28 de maio de 1934 – a entrega das mobílias para os estúdios da rua do Quelhas, 2. A Casa Olaio, empresa situada na rua da Atalaia, fornecera o orçamento logo no começo de 1934. Couto dos Santos, em longuíssimo documento, esclarece o percurso burocrático: cabimentação no orçamento dos CTT, aprovação ministerial e do presidente do conselho, não autorização inicial do tribunal de contas por cabimentação feita fora de tempo, necessidade de nova autorização. Em março de 1935, o imbróglio ainda não se resolvera. Claro que a Emissora Nacional não podia arrancar convenientemente em maio de 1934, dado o seu quadro de pessoal comportar apenas sete profissionais e as ambições serem muitas. Mas esperar por agosto de 1935?
A queda de António Joyce já se desenhava nos primeiros meses de 1935. Ele ter-se-ia mostrado incapaz de eliminar as dificuldades internas e as relações com o exterior, nomeadamente com os CTT. O governo – ao nomear Henrique Galvão, militar, deputado e carregado de aureola com a exposição colonial no Porto no verão de 1934 – esperava acelerar o que parecia enredado. O militar chegou e dois meses depois criou o espetáculo, uma semana de inaugurações. Sim, o Estado Novo precisava desta manifestação mediática, mas parece ter esquecido dezasseis meses de trabalho árduo e profícuo. Basta comparar grelhas de programas de meados de 1935 com as do final do mesmo ano para perceber a continuidade.
(extra) Henrique Galvão foi um vencedor em 1935, ao assumir o cargo de presidente da comissão administrativa da Emissora Nacional. Ele tinha até aí uma carreira de sucesso, começando por governador da região da Huíla (Angola), e foi um dos grandes promotores da exposição colonial do Porto (verão de 1934), que atraiu muita atenção.
Ao Porto confluíram turistas da Galiza, um barco foi de Lisboa ao Porto e visitantes alemães percorreram com entusiasmo o Palácio de Cristal. Houve dias em que o número de visitantes ultrapassou vinte mil.
Para tal, serviram as comunidades de africanos das colónias portuguesas e de Timor em exposição de costumes e habitat, que levaram as multidões a ver o exótico desses indivíduos (tratados por indígenas ou autóctones): mulheres com seios à vista e filhos às costas, homens com tatuagens cicatrizadas, roupa e adereços coloridos, danças e penteados frisados. Hoje, com a lente dos estudos pós-coloniais, podemos percorrer o que foi escrito e verificar o paternalismo, no mínimo, dessas notícias de 1934. Por exemplo, o editor do jornal escrever sobre tipos de beleza negra e a possibilidade de uma negra ser eleita rainha da exposição.
Um grupo que chamou mais a atenção dos visitantes e dos jornalistas foi o vindo da Guiné (hoje Guiné-Bissau), em especial os bijagós. No grupo, havia um menino de três anos, o Augusto, espécie de mascote da exposição, ou o enlevo das damas. A ele foi oferecido um triciclo e era vê-lo o dia todo a percorrer a avenida das Tílias no seu brinquedo novo. Os visitantes ofereciam-lhe guloseimas e ele aceitava tudo – imagino que com um grande sorriso.
A situação triste passar-se-ia no regresso à Guiné, para o final de dezembro de 1934. Foi dada a notícia da morte da criança. E, com ela, a vida menos moral dos pais, Augusto Baka e Maria Pató. Ele deixara outra mulher com filhos na Guiné, a mostrar bigamia; Maria provocava-lhe ciúmes, por contínua infidelidade, a revelar adultério. Nas lutas tradicionais dos bijagós, o adversário de Augusto pai morrera, aliás o único falecido da comunidade africana na exposição. O casal costumava aparecer bêbado – logo um quadro nada idílico dos guineenses.
Aqui, entraria Henrique Galvão. Nos dias seguintes, em carta ao jornal, ele apareceria a defender os africanos, dizendo que, se estes se embriagaram, tal se deveu a visitantes que não cumpriam as regras, ao darem bebidas alcoólicas para observarem os seus movimentos e danças. Pelo contrário, houve visitantes brancos que não seguiam os regulamentos, o que os obrigou a idas à polícia e ao pagamento de multas.
A morte do pequenino Augusto seria desmentida logo depois, a sossegar os leitores. Não passaria, assim, de um mero boato, pois o menino estava de boa saúde.
A Emissora Nacional não deve ter transmitido esta história que dava quase uma peça, mas fica aqui a memória.
